Como a falta de marisco afecta comunidades na Ilha de Moçambique

População da Cabeceira Pequena vive da apanha de mariscos e se ressentem da sua falta | Foto: DR

 

Aprenderam a conviver com o mar como extensão delas próprias. Mas a pesca desregrada animada pela indústria mostra-lhes uma faceta do mar que ainda não se habituaram a lidar. Falta peixe e falta marisco, como se o mar, que sobe por conta das mudanças climáticas, estivesse morto. Esta é a história de mulheres e homens que veem a vida mudar e de uma instalação que lhes quer dar rosto e resgatar a memória.  

Aos 15 anos, já o nível do mar definia os caminhos de vida de Rosa Napaua. A maré baixa marcava sempre a hora da apanha do xocolo, um molusco protegido por uma concha que já foi mais abundante na região da Ilha de Moçambique. O nome deu nome ao verbo “xocolar”, que significa o exercício da actividade.

Sem grandes margens de futuro, xocolar mostrou-se a actividade para que Rosa (agora com 35 anos) e a família não morressem à fome. A apanha agora é para a subsistência. Mas em tempos que a maré baixa era generosa servia também para montar um pequeno negócio e ajudar a comprar mais mantimentos para casa.

Como ela, quase todos os cerca de 5 000 habitantes que perfazem a população da Cabeceira Pequena vivem da apanha de xocolo e se ressentem da sua falta. “Em todas as casas aqui, tem alguém que trabalha com xocolo”, disse. É como uma profissão passada de geração em geração. Maiumuna Asmin - 28 anos – é, pelo menos, a terceira geração da sua família que se dedica a esta actividade. “Minha mãe faz, minha avó faz e ela também diz que aprendeu com a mãe dela”, explica Maimuna.

À Cabaceira Pequena, este pedaço de terra atirado ao mar Índico chega-se por uma viagem de barco a partir da Ilha de Moçambique. O mar marca o horizonte de toda a população nascida aqui.

Mulheres como Rosa e Maimuna tiveram de aprender desde cedo a linguagem das marés. Uma actividade a exigir a paciência que talvez apenas as mulheres tenham. “Os homens vão mais para pesca”, revela Rosa.

A fila indiana que fazem em direcção à faina como que convoca a memória bíblica da procissão em meio ao mar aberto para a fuga de um passado de dor. Os baldes que levam à cabeça são preenchidos por um Xocolo de cada vez, depois da mão esventrar a terra enlameada.  “Demora a encher” diz Maimuna e depois confirma que, muitas vezes, nem enche.

E nestes momentos em que têm o mar aos pés e apenas o céu por cima delas são as canções entoadas em emakhuwa que vão animando à apanha. São músicas de alegria, quando a faina é proveitosa e de tristeza quando não conseguem apanhar xocolos que, pelo menos, lhes saciem à fome.

E, de um tempo a esta parte, confessam Rosa e Maimuna, tem se repetido muitas vezes cenários de escassez. “Antes, apanhávamos muito xocolo. Agora, é sempre um pouco de cada vez. É mesmo só para comer”, revela, com uma voz embargada que não consegue disfarçar a incerteza do futuro. Também por isso, como uma espécie de pacto que aprenderam a fazer com o mar, já não se fazem ao mar sempre que a maré baixa. “É preciso dar tempo para que a “população” de xocolos continue a crescer. Não sabemos por mais quanto tempo teremos xocolo”, diz Rosa.

O que se pode dever a uma apanha desenfreada. Mas também a subida do nível do mar ocasionada pelas mudanças climáticas. Não é para menos. Moçambique, com mais de 3.000 km de costa, foi considerado, nos últimos anos, um dos cinco países do mundo e o número 1 no continente mais afectado pelos efeitos das mudanças climáticas.

Só em 2022, foram 4 ciclones tropicais e nos próximos anos podem ser esperados ainda mais. O que costumava ser um evento a cada 20 ou 50 anos, agora é uma ameaça permanente para as comunidades pesqueiras em condições muito vulneráveis.

Este impacto é ainda agravado pelo facto de o nível do mar ao redor da Ilha ter subido rapidamente e deve chegar a 20 centímetros nos próximos 7 anos, o que pode significar a eliminação desses comunidades e seu património.

Uma instalação para repensar a vida com o mar

 

                               Exposição imersiva, criação e curadoria de Yara Costa, na Ilha de Moçambique

É para salvar a terra e com ela homens e mulheres e resgatar a sua memória a que veio a instalação imersiva “Nakhodha (Nahota) e a Sereia”, que nos coloca a bordo de um dhow para uma viagem em torno das muitas vidas do mar e com elas propor caminhos de regresso a um passado que era já futuro. É a arte interventiva, a tentar fechar a última comporta antes do mundo se esvair.

No edifício de uma antiga alfândega, no coração da Ilha de Moçambique, Yara Costa, que é a cineasta que assina a criação e curadoria da instalação, devolve a Ilha este lugar de centro do mundo e faz-nos repensar como, enquanto humanidade, ainda podemos salvar o planeta. “Há uma pesca industrial que está acontecer que faz com que não haja peixe e mariscos e quem sofre depois é o pescador artesanal, as mulheres de xokolo, as comunidades”, diz Yara.

E a nossa participação na instalação como que a nos confrontar com esta realidade. E também por isso é um lugar de crescimento de quem participa. Começamos talvez num lugar de meros espectadores da experiência do mar. Mas vamos aprendendo, a partir da realidade virtual, as suas vidas e as formas de vida que o mar invoca até chegarmos a posição de senhores do mar. É caminho que se faz em alguns minutos, mas que leva toda uma vida para ser feito na realidade “real”.

E por trás dessa odisseia, na perspectiva de regresso ao lugar de partida, de um passado em que a relação homem e natureza era de complementaridade, esta uma pessoa real, Jorge Jamal Sadique cuja vida de mar lhe valeu o lugar de Nahota, uma categoria a que apenas o andaime da experiência é capaz de nos colocar.

“Para se ser Nahota é preciso aprender a interpretar os fenómenos meteorológicos, como a temperatura, a velocidade e a direcção do vento, condições de navegação, estado do mar, entre outras. Ele tem que aprender isto tudo que mencionei, só assim pode ser considerado Nahota e não pode dirigir a embarcação de qualquer maneira, tem que obedecer regras”, avisa Jorge que também é conhecido como Thorodji.

Hoje trabalha como segurança já reformado da vida do mar, uma reforma compulsiva a que chega pela morte lenta do mar. Iniciado na pesca em linha, conta que hoje a pesca tornou-se desregrada e talvez isto explique muito da escassez do peixe hoje. “Isto obriga os pescadores que tinham o mar da Ilha de Moçambique como os postos de trabalho acabem por pescar em mares como o de Mocímboa da Praia”, disse.

Uma viagem que, com o vento a favor, pode durar cerca de 5 dias, com o vento contra pode levar até 20 dias.

Com o olhar distante, do tempo em que regressava à margem com o barco pesado com mais 40 kg de peixe. Nos seus últimos dias de pesca – corria o ano de 2019 – havia dias que conseguia apenas 5 kg. “Noutros, podia até voltar sem nada”, conta.

Não viu outra alternativa, se não procurar uma nova fonte de renda. Mas pescador uma vez, pescador sempre. E ainda coloca algumas gaiolas “malemas” na esperança de que consiga apanhar algum peixe, pelo menos, para lhe saciar a fome e matar a saudade dos velhos tempos. “Noutro dia, lancei 7 gaiolas para dentro e quando fui tirar todas nem um peixe consegui tinha”, disse com o tom de quem procura graça para não viver lavado em lágrimas.

 

Por Elton Pila