Quando no dia 1 de Março Assa Matusse subiu ao palco, era uma simples menina do bairro, mas até ao fim do concerto, com lotação esgotada – 1500 pessoas – e o público em pé, em delírio, nascia a mulher, artista do mundo. Esse concerto no Centro Cultural Moçambique-China foi um momento de gratidão, mas mostrou-se como uma verdadeira reverência a quem trilhou com coragem e irreverência os difíceis caminhos da música, da verdadeira arte da música, diga-se, como se o coro de música vozes da audiência respondem a possíveis incertezas e medos de quem veio lá dos becos: obrigado pela música! Afinal, a boa arte um dia vinga, vence e tem lugar em tempos em que tudo é efémero e volátil.
Depois de 1 de Março, todas as perguntas passaram a ter respostas, como se tudo tivesse ali começado. Já no álbum +Eu, Assa anunciava porque caminhos planejados andar, já havia pautado por trilho mais distante, específico, com bosques e temporais imprevisíveis. Escolheu ir longe, respeitando a tradição de qualidade da música moçambicana – a confissão de ter António Marcos como sua referência, já diz muito do conhecimento dessa tradição. Em Assa vê-se o horizonte, projectam-se outros nomes, as melhores versões das damas e damos da verdadeira arte da música, a transformação dos géneros, a globalização do que é local e quase ritualístico. Podem dormir serenos os percursores, em Assa, a herança valorizou-se.
Esta entrevista foi feita antes do concerto de que nos referimos, talvez para que não fóssemos influenciados pela narrativa do sucesso imediato. Aqui, por isso, estamos preocupados em saber do trabalho por trás do sucesso. Da ascensão do astro que é hoje Assa Matusse, o que deixa e o que leva nesta etapa de sua carreira e o que será definitivo: a vontade de ser e fazer cada vez melhor, aqui, na França ou em qualquer lugar onde chegar a sua música.
O álbum “Mutchangana” (2023), pelo impacto que gerou, pode se considerar a sua consagração?
Eu diria que sim, mas também é importante respeitar o meu primeiro bebê, que foi o “+Eu” (2016). Mas eu acho que sim este álbum aqui é de consagração porque já venho com uma identidade que estava mesmo a procura quando fiz o primeiro álbum. Estou muito feliz com o impacto que tive e com esta recepção de todos que são a ter sobretudo por parte dos jovens, aquém eu queria atingir. Nós que fazemos esse tipo de música às vezes somos conotados com um certo tipo de público, eu quis quebrar essa barreira e, desta vez, acho que consegui.
E o que teve de diferente neste trabalho?
Olha eu acho que o trabalho em si já traz uma complexidade em relação aos produtores e onde ele foi feito. Foi iniciado em Moçambique e terminado na França. Como agora me encontro a residir lá fica também esta curiosidade toda em saber o que na verdade este álbum tem de especial. A diferença é mesmo em questões de produção, questões de identidade. Fui a procurar coisas que em Moçambique não tínhamos, mas saí com uma base porque era importante deixar registadas as minhas origens neste álbum. Não posso confiar nisso a mãos alheias, a mãos de pessoas que não são da mesma cultura que eu, mas eu quis mesmo fazer essa mistura. Que bom que deu certo.
Os temas remetem para a mulher e os padrões sociais estabelecidos que limitam algumas liberdades e direitos, é nesta sociedade que você se espelha?
Nesta sociedade, eu diria, porque é a sociedade onde eu cresci, eu sou daqui, então mesmo normalmente quando escrevemos ou fazemos letras, às vezes faço uma viragem para o feminismo porque sempre temos essas questões de ter que sempre nos curvar. Como mulheres, somos capazes. A sociedade é que tem ditado muitas vezes como o ser humano vai ser, infelizmente não é possível crescer e viver de forma isolada, mesmo que cada um esteja em sua casa, existe sempre o mundo lá fora. O mundo e a sociedade são aqueles que me têm inspirado. Costumo dizer que o álbum foi terminado na França, mas foi feito e pensado para os moçambicanos. Não só para os machanganas, por assim dizer, mas também para os ndaus e macuas, todos os povos de etnias diferentes que temos em Moçambique que por muitas vezes foram oprimidos não se manifestaram na sua própria língua.
Estar baseada na França contribui para a estética do trabalho e performance da Assa nesse álbum?
Exigi um bocadinho mais de mim, é verdade. Contribui bastante na estética e na forma como eu vou me apresentar. Depois também, quando pensamos no nosso país, temos cuidado com tudo o que vamos falar, porque sabemos que representamos todo um país. Tudo isto também começa a destacar-se por aquilo que eu sempre quis ser como artista. Fui adquirindo muita experiência, sobre como ser e estar, mas sempre fui assim, só muda o fato de ter mais conhecimento e por isso, poder usar todo o potencial de forma mais inteligente no que diz respeito à música no palco.
Já agora, o que você levou para a França?
Tenho muito amor pelas línguas e literatura. Acho isso uma coisa muito fascinante. Sempre olhei as línguas como uma forma de expressar a arte, eu vejo as línguas como uma arte na verdade. O francês era uma das línguas que eu queria falar, sobretudo poder estar numa metrópole como aquela onde existe muita diversidade, há muitos artistas e por isso é preciso realmente que se tenha algum trabalho interessante a se mostrar. Então eu quis me desafiar. Escolhi a França pela língua, queria também apender a falar uma nova língua, sempre que vou sair de Moçambique para um país procurar aprender sempre tento aprender a língua. Por outro lado, o facto de o mercado ser totalmente diferente, influenciou. Essa mudança foi oportuna para o meu trabalho, pelas condições que lá existem. A língua só veio para exigir esta vontade minha de lá estar, sobretudo porque é um país no sul da Europa que não fica tão longe de Portugal onde temos a nossa língua, onde fala-se português, onde posso me movimentar e sair a ganhar como artista.
É o caminho para um salto na carreira e oportunidades maiores?
Sim, fora há mais oportunidades. Nós, na verdade, não sabíamos que a nossa casa nos tratava tão bem ou que havia todas as condições. Não sabíamos, ninguém quer sair do seu país, acredite. Até sair à procura realmente das melhores condições e eu vi na França, se calhar um país em que poderia desenvolver muito mais e que poderia ter muito mais oportunidades como cantora, como artista, então escolhida e fui para lá. Esta é uma das formas que eu vi de internacionalizar a minha carreira e me fazer presente em outras cenas musicais do mundo.
Como foi a adaptação e o processo de inserção no circuito cultural francês?
A experiência é positiva e ao mesmo tempo negativa. Para quem sai do mercado moçambicano, é extremamente diferente a forma como nós lidamos com “music business”. Na verdade, não existe “negócio musical” aqui em Moçambique. A indústria ainda está muito fraca, tanto que não temos editoras.
Num outro país, o que você vê sobre a indústria da música moçambicana?
O que o próprio moçambicano sem sair já percebe. Temos muita fraqueza em termos de cultura. Vou falar da minha parte que é a música. Acho que ainda existe muito trabalho para se fazer sobre tudo no próprio povo moçambicano. Começo a sentir que está a surgir essa curiosidade de saber quem é a Assa agora que estou na França. Acho muito triste. Saindo daqui [de Moçambique], as pessoas começam a ter um bocadinho mais de interesse. Mas a Assa já existe muito tempo, a Assa já faz música a muito tempo…. Começo a ficar preocupado com os músicos que cá estão. A ideia não é todo o mundo sair, é preciso que as pessoas comecem, é preciso que as pessoas não pensem que têm de sair para que sejam valorizadas na sua casa ou comecem a ter alguma notoriedade no país.
O que tem sido sua rotina artística?
O que acontece é que quando saímos de um país para o outro, carregamos a bandeira, queremos fazer conhecer o nosso país e começamos a ter cobranças também do próprio Moçambique para nós que lá estamos. Tentei me fazer apresentar em alguns eventos, alguns festivais e marcar a minha presença não apenas um título individual, mas também de Moçambique. Há quem diga até hoje que não conhece o país, se calhar nem um moçambicano na França e o que tenho ouvido todos os dias. É, por isso, que faço questão, desta vez, onde eu vou fazer um concerto, aqui em Maputo, fiz questão de vir acompanhado de parte da banda francesa para que conheça um pouco mais de Moçambique.
Por Eduardo Quive