Uma Onça na Cidade

Foto: Gillelio Cossa

A escritora Deusa D’África transmuta o cenário de seu romance "Uma Onça na Cidade" (2023) em uma tela surreal vibrante, desvendando o âmago da memória colectiva, entremeada por ideias e imagens inquietantes. A narrativa, se desenrola como uma obra espatulada com ousadia.
O pano de fundo é um panorama dilacerante de desolação e violência, onde a luta por sobrevivência em meio ao caos é retratada com fúria e realismo. O texto, um emaranhado de metáforas e simbolismos, desvenda as tramas das relações humanas e as consequências amargas de um poder desmedido da mídia, dos militares, das milícias, da justiça.
A autora ficciona o quotidiano moçambicano, criando de forma alegórica um exercício de escrita em que ocorre a enunciação do pensamento de um alocutário com rosto e afeições cuja a consciência imagética reside na terra.
A narracção ocorre em dois capítulos dos quais na primeira parte intitulada pradaria, conduz o leitor à uma reflexão sobre a sexualidade do país diante de intempéries a que vê o corpo de sua nação decapitado ao longo de regiões que o compõem e as incertezas na sua orientação sexual.
É neste raciocínio que cria personagens abandonados pelas forças humanas e sobrenaturais que veem o seu destino entregue à própria sorte quando homens e mulheres são decapitados por um grupo selvático que mata em nome de seu Deus. Um dos personagens protagonistas da cena, é assassinado numa biblioteca quando lia um livro numa escola invadida pelos terroristas.
Descreve-se igualmente o papel da imprensa numa guerra silenciosa a que todos veem-se sem rumo diante de um imbróglio que nos remete a questionar a paz tão proclamada. Através da técnica de encaixe, narra as rondas de negociação da paz como uma luz para um povo que anseia por uma paz sempiterna, ainda que mergulhado em dilemas.
No segundo capítulo designado Munguine e Matalane, ficciona a partir dos desafios impostos aos que ingressam ao serviço militar obrigatório cheios de sonhos e aos que terminado o cumprimento decidem continuar na vida militar e buscam diversas especialidades na corporação. Os desafios de uma mulher militar e os esteriótipos a que a sociedade a submete, a mulher mãe ou esposa que vê seu marido ou filho dando a vida pela defesa da pátria.
E por fim, termina-se com a assinatura de acordos de paz e um país que vive de memórias de guerra. Uma escrita que reverbera-se no quotidiano de uma pátria em constante metamorfose, na perspectiva de construção da paz e liberdade.
De acordo com Sílvio Ruíz Paradiso (in posfácio), este é um romance que transcende os limites da realidade, onde a literatura encontra a pintura e ambos tecem uma tapeçaria de desespero e esperança. A sucessão e dinâmica de poder, as nuances políticas e o anseio por um horizonte promissor são entrelaçados em uma prosa evocativa e poética. Cada página é uma jornada pela dualidade humana, mergulhando o leitor nas profundezas da alma, onde a busca pela paz entrelaça-se com a teia da violência. Este não é um livro para os fracos de espírito; é um mergulho nas entranhas de uma nação em tumulto.
As imagens são vividas, por vezes desconcertantes, carregadas de significado e provocação. Deusa D’África desnuda as feridas e cicatrizes de uma nação, transformando a dor em arte.
As páginas deste livro são um espelho da vida, reflectindo o horror, a beleza e a esperança, envolvendo o leitor com uma narrativa que não apenas conta uma história, mas faz ecoar a ressonância da condição humana. "Uma Onça na Cidade" (2023) é uma obra que desafia a mente e a sensibilidade, como um quadro que não apenas decora uma parede, mas transcende o espaço e o tempo, convidando-nos a mergulhar profundamente em sua complexidade.
O polegar que vira cada página está destinado a se afundar ou tinta ou em sangue, mergulhando no mundo de Deusa D’África, uma artista das palavras que nos leva em uma jornada através da essência da vida, da morte e de tudo o que há entre eles.
(Por Deusa D’África)