A capa deste ‘‘Lagartos de Madeira e Zinco’’ anuncia um livro de crónicas, este género num pêndulo entre o Jornalismo, enquanto aquele texto que tenta ser um flagrante do real e a Literatura pela forma que este flagrante do real nos chega e as cores com que se pintam os quadros-textos para que o jornal valha até depois do dia seguinte. A crónica acaba sempre por ser uma segunda vida do Jornalismo e uma vida anterior e interior da Literatura, a sobreviver a passagem do tempo. Tanto estes textos sobreviveram que agora estão compilados em livro.
As crónicas que fazem este ‘‘Lagartos de Madeira e Zinco’’ foram, inicialmente, publicadas no Jornal Notícias. Era um encontro semanal com personagens cujo destino estava inscrito no próprio nome como João Matandza, John Perigo, André Ximovane. Mas também com o seu autor. Agora, compiladas assim em livro, temos a grande fotografia de vítimas da própria circunstância e percebemos que são feitas destes escombros de uma vida que implodiu sobre si mesma. São pessoas-personagens que saem das casas de madeira e das chapas enferrujadas, amantes dos senta-baixos, filhos de famílias que vivem a pensar futuro como se fosse a única forma de passar incólume sobre as brasas do presente. São crónicas de cariz social, mas não a perseguir a pauta didática, mas como retalhos marginais do tecido quotidiano dos subúrbios que os alfaiates descartam e entopem os drenos. Conhecemos as histórias das pessoas-personagens, vemos-lhes a luz sépia nas paisagens em que se movem, sentimos-lhes os cheiros. E nisto a descrição, que há-de ser das maiores ferramentas que estas crónicas vão buscar à reportagem jornalística de que Hélio Nguane é um exímio escultor, jogam um papel importante. Atentemo-nos aos dois primeiros parágrafos do conto ‘‘O corpo não identificado’’:
‘‘A BACIA estava estacionada num canto solitário da casa. Cheia de água, restos de folhas de cebola, couve, alho, pimenta e arroz, e o recipiente exalava um cheiro característico. As moscas rondavam o local. Os donos da residência ensaiavam a sua saída. O sol, aos poucos, libertava raios intensos. O galo preparava as cordas vocais, o orvalho embelezava o capim verde e outras plantas.
A porta abriu-se, as chapas da casa de madeira e zinco estão transpiradas e, de três em três minutos, uma gota deixa o tecto da residência e bate no chão. A terra está húmida, os passos do galo, que há três minutos cantou, ainda estão em evidência.’’
Nesta crónica temos as geografias e as vidas que animam grande parte dos textos. Esta incursão aos subúrbios com as histórias e estórias que lhe são características como encontramos nos dois volumes de ‘‘Cadernos de Memória’’ de Aldino Muianga ou em ‘‘Xicandarinha’’ de Calane da Silva.
Outros cultores da crónica, como os brasileiros Nelson Rodrigues e Fernando Sabino, ensinaram-nos que a crónica, apesar de explorar as minudências da vida quotidiana, os dramas a pesarem ao ombro, também é feita da graça que se encontra no inesperado, no imprevisto. E encontramos isto neste livro, a título de exemplo podemos citar ‘‘Newcastle quis matar a festa I e II’’, qu’ é sobre uma família que andou a engordar uma galinha desde Junho para animar as refeições de fim de ano e ter de encontra-la, nas vésperas do natal, morta de doente.
Mas, como dizia Rubem Braga, escrever crónicas é viver em voz alta. E muitas vezes encontramos textos confessionais do autor. E temos a sensação estranha de quem é flagrado em bicos dos pés com o ouvido sobre as chapas que fazem o muro da casa do vizinho. É nas crónicas como ‘‘Lagartos na cama’’ ou ‘‘Madeira e zinco’’ que sentimos a angústia que move ao cronista e o desespero de quem sente a ampulheta a mandar os últimos grãos de areia para baixo.
Hélio Nguane escreve vencido sobre os vencidos, sem a pretensão de que os possa salvar ou fazê-los heróis da própria história.
E a propósito deste livro ‘‘Lagartos de Madeira e Zinco’’ vale lembrar o que Baudelaire escreveu sobre ‘‘Os miseráveis’’ de Victor Hugo: ‘‘Enquanto existir, por obra das leis e dos costumes, uma danação social que crie, artificialmente, infernos em plena civilização e que complique com uma fatalidade humana o destino que é divino… Enquanto houver na terra, ignorância e miséria, livros da natureza deste aqui poderão não ser inúteis’’.
(Por Elton Pila)