A artista plástica moçambicana, Suzy Bila, a partir de Portugal, reside a mais de 20 anos, pinta as multifacetadas paisagens do seu mundo, das narrativas e das inspirações que partem das suas origens ao universo complexo e metamorfoseado. A sua relação com a arte, sempre foi de procurar perceber a humanidade e como os processos criativos podem ser factor de socialização, inclusão e compreensão do outro. Nessa busca, tornou-se educadora e investigadora, dando um valor social à arte, como pouco se lhe reconhece. Conta-nos nesta entrevista do seu trabalho nos três campos que não procura dividi-los, antes torná-los num corpo que simplifica e traz práticas que podem resolver problemas concretos que o “sistema” se mostra incapaz de solucionar. Vamos perceber do que se trata, através das perguntas e das respostas que se seguem.
Mozavibe: Foi no atelier de Noel Langa onde se revelou e aperfeiçoou o talento artístico. Como se deu esse eclipse total da arte que veio a mudar a tua vida e a definir o que hoje sabemos e vemos…
Suzy Bila (SB): Em 1993, conheci Noel Langa, artista plástico residente no bairro Indígena, em frente a escola de formação de professores. Noel pintava no seu quintal, e eu olhava-o sem que se desse conta da minha presença. Homem de grande humanidade com um olhar diferente sobre a educação, acolhia jovens no seu atelier para exploração artística. Foi neste espaço que comecei a explorar a aguarela, guache e tive o privilégio de partilhar momentos construtivos com artistas de renome, Malangantana, escultores como Alberto Chissano, Samate, Víctor Sousa, Zaqueu…
Noel disponibilizava material só para uso dentro do ateliê. A minha necessidade de continuidade do processo criativo levou-me a usar temperos de cozinha em casa. No segundo ano de frequência do ateliê, Noel organizou uma exposição colectiva de todos os jovens, na qual convidou os nossos pais a estarem presente na inauguração. Neste mesmo ano integramos como monitores voluntários no “Circo da paz” projecto entre a UNICEF, o Ateliê Arco-íris e a Escola Nacional de Artes Visuais, com a actriz Ana Magia, o músico Chico António, entre outros. A maioria dos jovens eram futuros professores e recém-formados das Artes Visuais. Esta partilha nos permitia adquirir novas ferramentas e um novo olhar sobre educação artística que fugia ao que era trabalhado no ensino oficial. A formação de monitores, trazia novas metodologias que nos permitiam reflectir sobre a natureza do acto de criar e as condições em que este pode ocorrer e a forma como ele pode construtivamente ser desenvolvido.
M: Parte para Portugal, em 1996 já artista. Fale-nos da chegada num outro país, outras paisagens. Quais foram as tuas primeiras impressões?
SB: Quando cheguei a Portugal vinha a uma cidade em metamorfose, de uma intensidade de vivências e envolvências em exposições, workshops, bienais, concursos de Arte... A cidade de Maputo abrira portas às mulheres artistas, fui uma dessas poucas que desbravou territórios vestidos por homens. Em Lisboa senti-me isolada, não havia tanta moçambicanidade como há agora. Em algum tempo senti uma grande nostalgia. O choque cultural era bastante visível no trato e na exuberância do poder, todos queriam ensinar-me a ser e estar como se tudo o que me fez mulher não fosse importante.
Senti que havia a necessidade de mostrarem que eram a razão e a verdade nas artes, que os artistas só poderiam cifrar dentro de parâmetros restritamente criados por um conjunto de leigos que simbolizavam a arte portuguesa. Procurei construir meu trabalho silenciosamente e exigindo cada vez mais de mim. Sempre tive uma forte força de fugir constantemente de lugares nos quais me sentia a mais, onde alguns faziam questão de reclamar o “nós e eles”. O ambiente artístico era uma arena na qual os artistas de países africanos acabavam por desistir.
M: E no que trabalhou ao chegar em Portugal?
SB: O meu primeiro trabalho foi numa casa de acolhimento onde a experiência e a ausência de espaço artístico nestes lugares desafiou-me a um investimento contínuo nas metodologias de intervenção através da arte. Tendo feito a licenciatura em Educação e um mestrado no qual escrevi artigos sobre a integração da arte na minha prática na primeira infância.
Ao integrar em uma Equipa de Intervenção e Capacitação Familiar na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), vinha de uma experiência em sala com crianças dos 0 aos 6 anos. A minha primeira observação ao trabalho feito pelos assistentes sociais e psicólogos, na relação com a família, realçava uma organização das situações de vida das famílias complexas. Quando nos focamos na negligência entramos no mundo da imprevisibilidade, no qual somos confrontados com um mundo caótico em que nos esforçamos por lhe dar coerência. Tendo em conta que um indivíduo influencia o condicionamento da sociedade e a sequência de sua história no tempo, da mesma forma em que é condicionado pela sociedade e pelo seu processo histórico, era emergente a criação de projectos sustentáveis que nos desafiassem a mudanças na intervenção junto das crianças e jovens com um olhar à temporalidade da intervenção. Olharmos as diferentes dimensões e perspetivas, para que a criticidade nos possa permitir respostas construtivas e caminhos coerentes com as necessidades e peculiaridades culturais de cada família.
M: Esta afirmação sua numa entrevista, deixou-me num certo encanto: “Olhando para trás vejo uma relação simbiótica entre o nutrir a alma e o acabar com a fome”. Queres comentar essas palavras?
SB: A minha arte não pertence a definição “institucionalizada”, vivo em territórios multifacetados. Os lugares onde a arte processa no meu caminho artístico estiveram sempre relacionados com o espaço ocupado pela mulher no quotidiano familiar e no nosso contexto social. Quando comecei a pintar no atelier do Noel Langa, os materiais por ele providenciados (aguarelas, papel, pincéis) ficavam no atelier. A necessidade que tinha de continuidade fez com que descobrisse ou experimentasse outros materiais naturais na “cozinha da minha mãe”, temperos (colherão, caril, café, plantas) conseguia criar cores que me permitiam coisas que a aguarela não conseguia me dar. Anos depois quando cheguei a Portugal, vivi no Campo do Ourique, lugar onde nasceu o meu primeiro filme, em 1997. Não conhecia quase ninguém, a minha vida estava reduzida aos cuidados do meu filme e a criar as minhas peças nas paredes da cozinha. Situação que voltara a acontecer no ano 1999, quando conheci o Eurico Gonçalves, ele ficou surpreendido quando conheceu o lugar tão pequeno na cozinha, onde havia pintado as peças enormes. Quis perceber como fazia, estive na cozinha com ele, a descrever todo processo. Eurico, gargalhou de forma autêntica, pessoa especial, que guardo comigo. Sinto que o espaço da cozinha, está simbioticamente relacionado com o meu processo criativo. Hoje em dia, é na cozinha onde crio as peças de cerâmica. Sinto-me bem neste lugar. Não sou uma excelente cozinheira, mas organiza-me e sinto a pertença.
M: Como foi a afirmação no espaço artístico?
SB: A evolução tecnológica acabou por ser a melhor porta de relação com o mundo, onde projetei-me sozinha para todos os cantos do mundo. Aprendi a criar site, blogues e a manipular as redes sociais a favor daquilo que me interessa no mundo artístico. A inserção no mercado das galerias, colecionadores, curadores que abraçam o paradigma da arte contemporânea acontece gradualmente, com as pessoas certas. Oportunidades de partilha do meu trabalho foram surgindo e tudo foi seguindo como agora no seu leito.
M: Entretanto, para lá dos pincéis é educadora e investigadora. Do que se trata essencialmente esse trabalho e a que problemas procura dar respostas?
SB: Agora como educadora artista e investigadora, questiono o meu papel constantemente, quando estou em contexto de intervenção social não procura formar artistas, metamorfoseio-me na comunidade, escutando a voz e as necessidades intrínsecas dos que dela usufruem, gerando multiplicidades e agenciamentos. Procuro em todos os movimentos, desde o canto à dramatização, criar mapas que lhes permitam formas de estar entre as diferentes descobertas, criando fluidez entre os interesses do desenvolvimento da identidade e da autenticidade. Este movimento, vivido, está permanentemente no quotidiano, resultando da expressão particular de cada um, que podemos encontrar nas pedagogias contra o sistema e que se preocupam com a disrupção, a preconcepção.
A educação artística percorre processos que tenham em conta este movimento vivido, os diferentes perfis e reflexos e os seus significados. Procura conhecer o desejo de encontro, de articulação dos recursos e a gestão dos sentimentos inerentes, gerando processos de pertença mútua. Apelamos a discursos, práticas e desejos específicos que estabelecem uma estrutura crítica e reflexiva, que vivem nas nossas descrições dos contextos onde cada processo foi possível (desde o espaço habitacional, os diferentes lugares explorados, as viagens do metro, cafés, museus, ateliers conjuntos...). Procuramos a apropriação de partículas das narrativas do outro numa nova relação como autor do novo discurso que se procura articular com o discurso que há no mundo.
É isto que sonho para o nosso Moçambique, uma educação que responde aos problemas das nossas crianças e jovens. Porque eles teem problemas próprios que precisam serem respondidos à medida das suas especificidades.
M: Olhando para o seu trabalho veem-me sempre a palavra “metamorfose” e “introspeção”. A sensação de uma constante procura pela profundidade das coisas. Que lugar é esse onde a Suzy busca as representações?
SB: Gosto de construir caminhos, viver experiências únicas com pessoas, criadores ou não... Gosto de aprender todos os dias...A sorte também se procura, ou não...talvez o trabalho crie o seu próprio caminho. Sou uma mulher ativa e inserida no contexto da intervenção social, onde lido com diferentes culturas. E nesses lugares apercebo-me das dificuldades de ser estrangeiro. Muitos me olham com admiração e chegam a dizer-me pessoalmente nesses momentos tudo faz sentido, o impacto do nosso papel junto do outro.
M: Há cada vez mais artistas moçambicanos a surgir e com ambições de se expor ao mundo. Há inclusive os que já tem feito parte de mostras internacionais. Há um espaço para a nossa arte nos diferentes territórios? Que desafios se colocam para o posicionarmos de artistas moçambicanos de forma global, partindo da sua experiência?
SB: Enquanto o ocidente detiver o monopólio da definição estética de Arte, dificilmente conseguiremos um lugar. Mas quando descortinarmos este lugar, percebemos a importância da África na Arte Contemporânea. No meu trabalho procurei sempre a pluralidade de vivências pessoais, sempre fiz da ideia de uma África generalizada e de um discurso de práticas que aprisionam o meu pensamento, isso acabava por ser a razão da minha força, o vector principal de mudança e de procura de uma expressão própria.
M: Disse-nos que sonha para Moçambique uma “educação que responde aos problemas das nossas crianças e jovens”. Pode, agora, fundamentar o que guia esse sonho e no que isso consistiria?
SB: O risco e o perigo que moldam o nosso quotidiano cultural em Moçambique não tem muitas respostas, é normal nas nossas ruas vermos crianças a vender, ou a viverem nas ruas. Cresci a ver e ouvir a palavra “Molwene”, quando surgirá uma legislação e programas específicos oficiais que vão dar respostas a situação da criança de rua?
Em Portugal sou técnica que trabalha com crianças e jovens em risco e perigo, desafio-me a novas experiências e novos significados que invocam a necessidade de investigar novos olhares e a uma nova prática que possa um dia apoiar o nosso Moçambique. Tornou-se primordial reflectir sobre as questões fundamentais da educação, sendo que a arte poderá trazer ferramentas para melhor compreensão dos problemas dos nossos “Molwenes” e das práticas e políticas sociais como a multiculturalidade, inclusão, abrindo possibilidades de reflectir sobre a ideia de aprender com as comunidades e as suas dinâmicas.
Foi nesta complexidade de circunstâncias que se tornou pertinente a minha investigação, não só pela motivação pessoal de poder unir três profissões – investigadora/artista /educadora. Mas com a ideia de investigar a natureza do ato criativo, as condições em que poderá ocorrer e a forma como ele pode ser construtivamente desenvolvido, desconstruindo processos inerentes aos modelos de intervenção junto das crianças e jovens em situação de risco e perigo, recorrendo á o método de pesquisa a/r/tográfia por esta ter profundas relações com a investigação-ação e intervencionista. Reflete uma prática viva em que as próprias práticas dos professores e artistas tornam-se locais/ambientes de investigação.
Era crucial participar nos processos de mudança das dinâmicas junto da comunidade educativa do país que me viu nascer, e intervindo como mediador ao criar espaços de complementaridade, onde poderemos construir práticas que nos levam a idealizar novos ambientes que não se foquem num ensino informativo, mas que possibilitem à criança e ao jovem um tempo de incorporar o que vive nos seus contextos habituais de vida através das linguagens artísticas.
Por Eduardo Quive